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[N.E.] Crítico e jornalista prolífico, o estilo fluido de Morais foi moldado pela urgência do momento político e artístico, por um certo humor afetivo e pelas exigências dos prazos dos jornais. Raramente incluem citações e referem-se não apenas a textos críticos e filosóficos de autores brasileiros, mas também internacionais da época – de Marcuse a Fanon–, bem como importantes críticos que refletiram sobre arte povera e práticas emergentes de Land Art, como Germano Celant e Michael Heizer. Para as notas aqui incluídas, dada a disponibilidade de recursos online, o foco é situar o leitor no que diz respeito aos contextos histórico, político, social, cultural e artístico brasileiro.

Na original Frederico utiliza a palavra obra como verbo "obrar" enfatizando a questão do processo e práxis. Certamente neste sentido poderia referir ao John Dewey e sua diferenciação entre "the work" (a obra) e "a work" (uma obra) de arte enfatizando o primeiro como arte como experiência e processo e a segunda como objeto físico. Ver: DEWEY, John. Art as Experience, Perigee Books: New York, 1934, 162.

Em 1969 Nelson Leirner realizou a exposição Playground no Museu de Arte de São Paulo (MASP) e no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio). Apresentada no vão de entrada de ambos museus, ou seja, num espaço entre o dentro e o fora das instituições, a mostra consistiu num enorme playground ao ar livre composto por esculturas-brinquedos e obras participativas que convidavam o público-cidadão à experiência estético-lúdica nessa zona fronteiriça entre a rua e o museu, entre a arte e a vida, entre o lazer e a criação. Em São Paulo, Playgrounds coincidiu com a inauguração do museu, realizada no mesmo ano, e com a ideia de Lina Bo Bardi, arquiteta responsável pelo projeto do MASP, de criar um espaço ao ar livre onde as pessoas pudessem se encontrar, ver exposições, tomar sol, escutar música. Em 2016, como forma de lembrar e homenagear o projeto de Leirner, a curadoria do MASP comissionou a seis artistas obras que deveriam ter como ponto de partida o espírito da exposição realizada em 1969.

Frans Krajcberg (1921-2017) foi um artista polonês naturalizado brasileiro. Sua investigação no campo da arte se deu a partir de uma crítica direta aos abusos cometidos pela humanidade contra a natureza. Ainda nos anos de 1960, após temporada de estudos em Paris, instalou-se em Minas Gerais onde começou a criar "sombras recortadas" utilizando madeira, cipós e raízes. Krajcberg expunha a dor das florestas em trabalhos feitos com troncos de árvores, raízes e material orgânico carbonizados recolhidos de áreas de desmatamentos e queimadas. Suas esculturas eram como um grito de revolta da floresta frente a ação predatória do ser humano. Não gostava de ser chamado de artista plástico, se considerava um ativista ecológico.

Vanguarda Brasileira é o nome da exposição à qual se refere Morais, sendo a primeira mostra organizada pelo crítico em sua vida. Apesar do título bastante abrangente, se concentrava na produção de alguns artistas cariocas, tais como Antonio Dias, Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Maria do Carmo Secco, que tangenciavam a Nova Figuração, e Angelo Aquino, Dileny Campos, Pedro Escosteguy e Hélio Oiticica, sendo este último uma espécie de ponte entre os "dois grupos" de artistas. Oiticica, infelizmente, não pode estar presente, tampouco mandar suas obras. Diante de tal impossibilidade e, ao mesmo tempo, com enorme desejo de ter seus trabalhos na mostra, Morais juntamente com Antonio Dias e Rubens Gerchman decidiram recriar seus Bólides, tomando como referência o seu conceito de apropriação. A respeito da decisão, comenta Frederico: "​Escolhemos ovos e brita na realização dos trabalhos, matéria-prima que acabou sendo usada em um grande happening na noite do ver- nissage, no qual muitos presentes viram um ato político – contra o regime militar. Decisão que Oiticica aprovaria, ao referir-se a ela em seu texto de apresentação da mostra Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967." In RIBEIRO, Marília Andrés. "A arte não pertence a ninguém". Entrevista com Frederico Morais. Rev. UFMG, Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.336-351, jan./jun. 2013. Disponível em www.ufmg.br/revistaufmg/downloads/20/18-entrevista_fredrico_morais.pdf Vanguarda Brasileira representou um importante input na atividade de Frederico como crítico de arte e um divisor de águas em sua trajetória, já que marcou a sua despedida de Belo Horizonte, passando a residir no Rio de Janeiro, e a entrada definitiva do crítico no circuito nacional de arte.

Éden consiste em uma instalação-ambiente criada por Hélio Oiticica especialmente para a "Whitechapel experiment", realizada na Whitechapel Gallery em Londres, de janeiro a abril de 1969. A instalação-ambiente incluía Penetráveis, Tenda Caetano - Gil, B57 Cama Bólide 1 e Bólides Área 1 e 2; o piso estava todo coberto com areia; e o acesso ao trabalho só era permitido se as pessoas estivessem descalças. Foi em Éden que o artista concretizou e deu forma ao conceito de Crelazer, retirando a obra da zona do espetáculo e investindo na duração da experiência, no sonho, no descanso, no lazer-fazer não interessado. Trata de um espaço-abrigo aberto à vivência, ao estar presente na experiência. Segundo Oiticica, Éden é "um campus experimental, uma espécie de taba, onde todas as experiências humanas são permitidas – humano enquanto possibilidade da espécie humana. É uma espécie de lugar mítico para as sensações, para as ações, para a feitura de coisas e construção do cosmos interior de cada um.[...] Nunca estive tão contente quanto com este plano do EDEN. Senti-me completamente livre de tudo, até de mim mesmo. Isto me veio com as novas ideias a que cheguei sobre o conceito de 'Supra-sensorial' e para mim toda arte chega a isto: a necessidade de um significado supra-sensorial da vida, em transformar os processos de arte em sensações de vida." In OITICICA, Hélio. Texto produzido pelo artista para o catálogo da Whitechapel experiment, 1969. Fac-simile do texto original disponível em legacy.icnetworks.org/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cd_verbete=4523&cod=349&tipo=2

Tropicália é um instalação ambiental composta por dois Penetráveis - PN2 Pureza é um mito (1966) e PN3 Imagético, (1966-67). Estruturas precárias lembrando as favelas da época no meio de plantas tropicais, areia, pedras, e peças de madeira com frases poéticas, suas capas Parangolé e uma televisão. Oiticica escreve: "Com a teoria da Nova Objetividade queria eu instituir e caracterizar um estado da arte brasileira de vanguarda, confrontando-o com os grandes movimentos da arte mundial (Op e Pop) e objetivando um estado brasileiro da arte ou das manifestações ela relacionadas [...] Tropicália é a primeiríssima tentativa consciente, objetiva, de impor uma imagem obviamente brasileira ao contexto atual da vanguarda e das manifestações em geral da arte nacional." Hélio Oiticica, Tropicália: Seleção de textos 1960 - 1980 in Guy Brett et al (org.) Hélio Oiticica, Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 1992, p. 124.

Num evento quase mítico Hélio Oiticica interrompeu a abertura da exposição Opinião 65 no MAM Rio ao chegar com seus Parangolés, capas e estandartes acompanhado de um grupo de passistas da Mangueira, em um gesto artístico e sociopolítico, um ano depois do golpe militar de 1964. O colecionador Jean Boghici descreveu essa história agora mítica como: "Hélio Oiticica, Flash Gordon nacional. Não voa nos espaços siderais. Voa através das camadas sociais." (In: "Ainda o Parangolé," Artes Plásticas, O Globo (16 de agosto de 1965). Foi um momento-chave quando o experimental saiu do museu-escola-estúdio-laboratório para o mundo. Foi também quando a experiência contemplativa individual da arte foi invertida para uma vivência coletiva e participativa de vestir e assistir. "Toda a minha evolução que chega aqui à formulação do Parangolé, visa a essa incorporação mágica dos elementos da obra como tal, numa vivência total do espectador, que chamo agora 'participador'. Há como que a instituição é um 'reconhecimento' de um espaço inter-corporal criado pela obra ao ser desdobrado. A obra é feita para esse espaço, e nenhum sentido de totalidade pode-se dela exigir como apenas uma obra situada num espaço-temporal ideal existindo ou não a participação do espectador. O 'vestir', sentido maior e total da mesma, - contrapõe-se ao 'assistir', sentido secundário, fechando assim o ciclo 'vestir-assistir.' " Hélio Oiticica, Anotações sobre o Parangolé in Hélio Oiticica, op cit. p.93. In: Jessica Gogan, "Frederico Morais, os Domingos da Criação e o museu-liberdade" in Domingos da Criação: Uma coleção poética do experimental em arte e educação org. Jessica Gogan em colaboração com Frederico Morais (Rio de Janeiro: Instituto MESA, 2017) 253.]

Ao mesmo tempo que os Domingos reverberam na mídia conquistando sua identidade visual própria, ressalta-se o uso do termo "manifestação" de forma muito aberta em várias matérias sobre os eventos, um fato curioso diante do auge da repressão militar. É importante lembrar das restrições constitucionais do AI-5, que proibiam protestos e reuniões políticas. Pode-se reconhecer o risco que o MAM corria pelo posicionamento público e/ou que deliberadamente se imaginava protegido por uma imunidade criativa. No entanto, incidentes anteriores, como quando os militares impediram a abertura da exposição da representação brasileira da Bienal Pré-Paris, programada para abrir no MAM em maio de 1969; eles literalmente entraram nas galerias, contradizendo, de maneira explícita, essa condição intocável do museu. Na verdade, Maurício Roberto mais tarde refletiria que foi depois desse momento que o museu começou a ter uma conotação subversiva e, a partir de então, uma patrulha militar passou a estar sempre estacionada na frente do prédio (Apud Calirman, Claudia. Brazilian Art Under Dictatorship: Duke, 2012 p.24). Como então, em plena luz do dia, por assim dizer, era possível apresentar as "manifestações" de arte tão abertamente? Frederico menciona alguns incidentes, mas não há nada que indique que os Domingos tivessem sido ameaçados em termos de censura ou fechamento. Será que sendo apresentados como aulas criativas poderia tanto protegê-los quanto politizá-los? Pode ser, como crítico Roberto Schwarz sugeriu do teatro de Augusto Boal na época, que "onde Boal brinca de esconde-esconde, haja política; onde faz política, exortação" (As ideias fora do lugar, Cia das Letras, 2014, p.36) Dessa forma, apesar do contexto de repressão, as chamadas públicas dos Domingos como "aulas" mesmo sendo "manifestações" poderiam ter criado o verniz de segurança que, dado o contexto da época, tanto de forma inconsciente quanto consciente, criou a possibilidade da subversão lúdica como linha de fuga para dar lugar à expressão coletiva e política da liberdade. In: Jessica Gogan. Frederico Morais, os Domingos da Criação e o museu-liberdade. Domingos da Criação: uma coleção poética do experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: MESA, 2017, p.258

Um colaborador chave nos Domingos foi o diretor de teatro Amir Haddad e seu grupo Comunidade que vinha usando os espaços do museu, tanto as salas internas (no Bloco escola) quanto as externas, para suas propostas teatrais. Frederico convidou-o para colaborar no terceiro evento da série O tecido do domingo onde junto com seu grupo misturou movimentos coreografados e improvisados com a música de Jimi Hendrix e até com a missa folclórica argentina Misa Criolla, usando tecidos numa coletividade performática em torno dos pátios e jardins do museu que lembrava os parangolés de Oiticica e também O Divisor de Lygia Pape (um grande tecido branco com fendas envolvendo um corpo coletivo de mais de 100 pessoas realizado no MAM em 1968). Haddad, que logo depois inaugurou o grupo de teatro Tá na rua, realizando espetáculos em espaços públicos, atribui ter aberto suas "asas" para os espaços abertos e públicos com a proposta dos Domingos. Ver: Domingos da Criação op. cit, p. 258-259 e Entrevista Amir Haddad op cit, p.174-183, 176.

José Abelardo Barbosa de Medeiros, ou simplesmente Chacrinha, foi um comunicador de rádio e televisão brasileiro, apresentador de um dos programas de auditório mais longevos (ficou no ar durante três décadas, de 1950 a 1980) e de maior sucesso no país. Começou sua carreira no Rádio Clube Niterói, que funcionava em uma chácara, e devido ao seu jeito irreverente de receber as pessoas e conduzir o programa acabou ficando conhecido como Chacrinha (diminutivo de chácara). O "Velho Guerreiro", outro de seus apelidos, foi uma figura fundamental para a construção de uma relação inventiva entre a cultura popular e os meios de comunicação no Brasil. Contraditório, debochado mas, sobretudo, um comunicador, Chacrinha construiu a si mesmo como uma persona extravagante e franca que, usando roupas e figurinos impensados à época, tinha uma percepção muito aguda do Brasil e ousava dizer o que muitos não diziam. "Quem não se comunica se trumbica", "Eu não vim para explicar, eu vim para confundir" e "Na televisão nada se cria, tudo se copia" são algumas de suas expressões mais conhecidas. Durante a ditadura, como aconteceu com outros programas de auditório e com a cultura em geral, teve sua atuação monitorada pelos censores do regime militar.

Entendendo a importância da produção de registros visuais, Frederico convidou Beto Felício, que, por sua vez, estendeu o convite a Raul Pedreira (os dois fotógrafos mencionados neste artigo) para, junto com ele, criar a principal memória fotográfica dos eventos. Frederico também produziu um audiovisual. O artista Carlos Vergara realizou dois super 8, um registrando sua proposta para Domingo do papel e o outro documentando as diversas atividades do Domingo por um fio. Fernando Silva filmou em 16 mm vários e iniciou a edição de um filme a ser chamado Liberdade dos domingos (16 min). Também existe na Cinemateca do MAM vários 16mm de José Carlos Avellar jornalista, crítico e professor que na época também dava cursos no museu. Vários releases sobre os eventos anotam uma programação incluindo o registro do Domingo antecedente facilitando como Frederico sugere a autocrítica sobre os eventos e também a construção de memória de uma espécie de álbum de família não somente dos eventos mas do museu, da cidade e da época.

A criatividade liberada: “domingo, terra a terra”

Diário de Noticias. Rio de Janeiro, 27 de abril, 1971, Segundo Caderno, p. 8. Este artigo também foi publicado como “A terra da criação”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25 e 26 de abril, 1971. Caderno B

O Museu de Arte Moderna do Rio realiza hoje, das 9 às 19 horas, a quarta manifestação da série Domingo da Criação — livre criatividade com novos materiais. Antes foram realizadas “Um domingo de papel”, “O domingo por um fio” e “O tecido do domingo”. Hoje será a vez da terra, da areia, da cal, do cimento, do cascalho e do saibro, da argila e do barro, da pedra britada. É o “Domingo, terra a terra”. Será a mais radical e arrojada das manifestações, devido ao volume do material — vários caminhões de terra, brita, areia, etc. — e à dificuldade do transporte. Arrojada inclusive no que toca à sua organização, pois trará problemas de arrumação e limpeza, sobretudo depois de encerrada. Arrojada principalmente porque exigirá do público (mais do que dos artistas, como iremos ver depois) muita imaginação, inventiva e originalidade. Pois nas três manifestações anteriores fez-se uso de materiais mais ou menos afins ou pelo menos que estavam levando a realização de trabalhos muito semelhantes. Por exemplo, em quase todas as manifestações foram feitas roupas, bonecos e peças decorativas. Se no domingo do papel houve um comportamento mais coletivo, se no domingo do fio as propostas foram mais individualizadas, o domingo do tecido, devido à música e a participação do grupo teatral A Comunidade transformou-se em um espetáculo ritualístico e coreográfico de grande beleza visual. Mas aqui, uma parte do público parou para olhar — tão bonito que era. Mas o fio e no tecido muita gente ficou preocupada com a qualidade e valor do material (fios de cobre, peças de pano) e, ao invés de fazer coisas, transformar a sucata inibiu-se e até, em alguns casos, levou o material pra casa. Na verdade, o valor era quase nenhum, porém, como diz o Chacrinha, se você abrir uma lata de pastilha Valda, ninguém precisa, mas como é de graça em dois minutos ela estará vazia. Mas como levar a terra ou mesmo a obra feita com terra? Nada mais precário do que a areia ou brita. Ela não dura e se transforma rápida e continuamente. Algo bíblico: tu vieste do pó e a ele retornarás. “O domingo terra a terra”, portanto, será a prova de fogo da vitalidade da proposta que estou desenvolvendo no MAM. Sei que toda repetição leva à rotina e à criação de estereótipos — estou consciente disso, como de resto todos os que têm colaborado comigo. Sei que uma parte do público é o mesma — as manifestações ainda não atingiram o público mais distanciado do museu, os que residem nos subúrbios ou em bairros mais pobres. Sei que muitos dos que comparecem aos Domingos da Criação no MAM vêm apenas saldar um débito com a cultura e a arte, ver um ritual. Mantendo-se à distância da criação, procuram divertir- se um pouco. Terminada a manifestação voltam para casa ou trabalho. Retomam a rotina da vida. Não importa. Mesmo nisso há muito mérito. Muitos sequer procuram refletir um momento sobre o que estão vendo e/ou fazendo. De nossa parte a autocrítica é feita a cada manifestação, tendo à mão ampla documentação sobre a forma de fotos, filmes, fitas gravadas, etc.

Terra: tema e suporte

Se a paisagem é um tema constante da história da arte antiga e moderna, só recentemente a terra, como matéria-prima ou suporte, passou a interessar ao artista plástico. A partir de 1962 alguns artistas norte-americanos, alemães, italianos e holandeses começaram a realizar trabalhos com e na terra, primeiro passo para o aparecimento da chamada arte povera – expressão cunhada pelo crítico Germano Celant. Paralelamente desenvolveu-se a arte conceitual. E ambas, frequentemente, confundem-se com o que nos Estados Unidos foi chamado de earth-works movement, Com efeito, em 1962 Válter de Maria realizou trabalhos em desertos e em 1968 realizou um trabalho em três continentes: uma linha horizontal no deserto do Saara, uma vertical na Índia e um quadro nos Estados Unidos; as fotografias superpostas dos três trabalhos resultavam em uma cruz dentro de um quadrado; imagem que poderia ser conseguida em um só dia com a ajuda de um satélite. Michel Heizer fez várias escavações entre 67 e 69, dez em lagos secos de Nevada e oito em desertos da Califórnia. Richard Long realizou trabalhos sobre grama em 67/68, e fez um percurso de 10 milhas na Inglaterra, filmando cada meia milhas à frente e atrás. Dennis Oppenheim fez desenhos com tratores em várias fazendas e distribuiu marcos de madeira nas faldas de morros. Outros artistas como Robert Morris, Robert Smithson, Jan Dibbets, Cildo Meireles, Luiz Alphonsus Guimarães, Luciano Gusmão, Osmar Dilon, estes últimos no Brasil, a partir de 1969, realizaram vários trabalhos com e na terra. A Dawn Gallery, de New York, foi a primeira a reunir os artistas dos Estados Unidos que trabalhavam nessa linha em uma exposição, o que determinou o aparecimento do earth-works movement. Seguiu-se a mostra de earth art no White Museum da Cornell University de NY.

Um pioneiro

O Brasil tem, porém, um artista pioneiro da arte povera. Este, como não poderia deixar de ser, é Hélio Oiticica, um dos mais notáveis artistas plásticos da atualidade mundial. Com antecedência Oiticica realizou trabalhos com terra colorida e materiais pobres, colocados em seus bólidos, núcleos, penetráveis ou roupas “parangolé”. Em muitos de seus trabalhos ambientais usou areia e brita, como em Tropicália, de 1966. Em sua mostra da Whitechapell de Londres montou um ambiente denominado Éden que incluía areia e outros materiais precários. Para o IV Salão de Brasília mandou uma capa de plástico que deveria ser vestida em um quadrado de areia, e participou de uma coletiva na Galeria Bonino com uma bacia contendo barro o qual deveria ser revolvido pelo espectador — aqui, porém, com luvas de borracha. Na mostra que organizei em 66 na Reitoria da Universidade de Minas Gerais eu e outros artistas cocriamos um trabalho de Hélio: um caixote contendo brita.

Um outro artista que trabalhou com terra foi Frans Krajcberg — em Ibiza, na Espanha, e em Itabirito, Minas Gerais, fez quadros com terra molhada que após ficar no sol rachava-se provocando efeitos aleatórios. E arrancou e transformou raízes. No Museu de Arte de São Paulo e no MAM do Rio Nélson Leirner apresentou trabalhos de participação coletiva nos quais usou areia.

Arte/Vida

O artista pobre, como diz o próprio nome, trabalha com os chamados materiais não artísticos, sem nobreza — sucata industrial, detritos da paisagem urbana (o que chamei de “arqueologia do urbano” ou “memória da paisagem” urbana em trabalhos anteriores), borracha, papel, plásticos, água, terra, gelo, areia, grama, cordas, enfim, com o lixo. São os raw materialists e o que fazem, por sua aproximação com a natureza, à qual, de certa forma, retornam, é uma espécie de new naturalism. Ao trabalhar com estes materiais, o artista pobre quase nunca os reelabora. Ao usá-los “não expressa um julgamento estético, nem procura um julgamento moral ou social”, diz Celant. Seu trabalho é uma aproximação aos eventos naturais: o crescimento de uma planta, a reação química ou mineral, o movimento de um rio ou da neve, grama ou terra, a queda de um peso. Busca com isso uma identificação com os organismos vivos. Arte como vida, ou melhor, vida como arte/ação poema-ação como queria Tzara.” “Em contato com as coisas vivas afirma Celant — o artista descobre a si mesmo, seu corpo, sua memória, seus gestos”. Vive em um contínuo experimentar — o que significava para Dewey, vitalidade elevada. Os artistas pobres levaram a um ponto extremo esta vontade de experiência, pois segundo ainda o crítico e historiador italiano, “eles escolheram a experiência direta e não a representação, aspiram viver e não ver. Não querem fazer uma asserção uma indicação de valores, um modelo de comportamento, mas propor uma experiência com a existência contingente. Por isso, como quer o próprio Celant, deixaram de se considerar artistas, buscando apenas aprender novamente a perceber, sentir, respirar, andar, compreender. Fazem-se homens. Criar arte, então, identifica-o com a vida e existir adquire o sentido de reinventar a vida a cada momento”.

Tudo o que foi dito acima pode ser aplicado aos artistas que têm realizado trabalhos no âmbito das manifestações levadas a cabo pelo MAM do Rio. Estas, porém, têm um sentido ainda mais amplo. Nelas, a ideia de arte é substituída pela ideia de criatividade, a arte-suporte é substituída pela ação. A manifestação de hoje e todas as anteriores não podem ser denominadas arte conceitual, pobre, earth-work ou qualquer outro nome.

A série Domingo da Criação não constitui um novo ismo, escola ou movimento. Sendo uma proposta da coordenação de cursos do MAM, tem um caráter mais didático e pedagógico, educativo no sentido mais amplo. As manifestações visam liberar em cada um sua própria criatividade, desenvolver a imaginação a partir do obrar, da atividade. A ação criadora desenvolvida nas manifestações do MAM — e não apenas pelos artistas, mas sobretudo pelo publico anônimo — está ajudando a formar, no seu campo especifico, uma nova imagem da sociedade que está surgindo. É a imagem-ação como define Alfred Willener: imagin/ação, As manifestações não se limitam portanto à realização de trabalhos de arte, por mais livres e originais que possam ser, nem tampouco reunir um grupo de artistas para no fim da semana realizar trabalhos diante do público, ritual cuja repetição tenderia à criação de estereótipos e à monotonia. O que se está propondo é realmente algo mais revolucionário. É uma cultura viva, alimentando-se da própria dinâmica da vida, do dinamismo de cada humano liberado. É isto que Jean Jacques Lebel diz em seu livro sobre o living theatre: “Cultura vida, cultura-ação e também cultura em movimento. O efêmero se instala lá onde prevalecia a esperança de imortalidade. O belo não é o que admiraremos amanhã, o belo é que se faz, o que cada um faz, o que os outros fazem e através do qual cada um aprende e se reconhece. Imaginamos uma cultura “que não teria a mesma função nem o mesmo caráter” das “atividades criadoras individuais ou coletivas que, no lugar de se fecharem nos museus, se manifestariam em permanência na vida cotidiana atuando diretamente sobre a transformação constante das relações humanas... estas atividades teriam sentido enquanto não fossem privilégio de uma pessoa, de uma casta e, sobretudo, de uma classe”.