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A partir do estudo realizado sobre maio de 1968 sob o prisma da criatividade social e não do fracasso político, Willener ofereceu o conceito de "imagem-ação" como uma construção proativa e participativa de imaginação social. Trata-se de uma análise que ressoa com a formulação contemporânea da "protestival" – um protesto/festival misturando celebração carnavalesca, libertação catártica, ação política e rede social. Tal como refletiu o crítico Lars Bang Larsen com relação a O modelo, Modelo para uma sociedade qualitativa (1968) – projeto que transformou a galeria principal do Moderna Museet [Museu de Arte Moderna] de Estocolmo em um playground por três semanas –, retornar a esses acontecimentos e "imagens-ações" provocam novas formas de pensar sobre a crítica institucional, a arte como ativismo e a guerra entre arte x antiarte (e também podemos acrescentar os sentidos públicos ampliados da arte e da educação). O modelo era um projeto coletivo do artista Palle Nielsen, da escritora e editora Gunilla Lundahl e de seus colaboradores que visava usar o museu como um cenário para um projeto pedagógico radical, a fim de protestar contra o planejamento urbano que negava espaços públicos, particularmente para as crianças. Larsen descreve O modelo como "nada menos que uma utopia em massa de ativismo artístico, visando à aplicação de um conceito de arte antielitista para a criação de um ser humano coletivista" (1). Olhando as imagens do acontecimento - crianças empunhando martelos e serras fazendo seu playground e pulando do alto com os braços abertos em um mar de espuma - elas nos conectam aos sentidos de uma liberdade delirante em ato e de uma energia coletiva. Tanto com relação ao Modelo quanto aos Domingos, estas "imagens-ações" dialogam com uma potência regenerante. Como os comentários recentes sobre os protestos anticapitalistas globais observaram: "o carnaval revolucionário só pode durar algumas horas ou dias, mas o seu gosto permanece" (2). Talvez seja nesse "gosto" de guerrilha, de cruzamento de fronteiras e da hibridez criativa, que resida a dimensão estética e política dos Domingos. Embora claramente irreplicável, como a artista Graciela Carnevale reflete em relação à radicalidade do projeto ativista Tucumán Arde na Argentina em 1968, revisitar sua liminaridade e liberdade oferece "a possibilidade de construir leituras e recuperações críticas com diferentes pontos de vista" e se envolver com "potências e energias ainda latentes" (3).

(1) Larsen, Lars Bang. Palle Nielsen. The Model: A Model for a Qualitative Society. Barcelona: Museum of Contemporary Art Barcelona, 2009, p. 31-32.

(2) Ainger, K. et al (orgs.). Carnival Resistance is the Secret of Joy. We Are Everywhere: The Irresistible Rise of Global Anticapitalism. London: Verso, 2003, 173-184, 182. Disponível em: artactivism.gn.apc.org/stories.htm

(3) Carnevale, Graciela. Vectores. Revista Mesa, n. 4. Passado como pensamento forma. Práticas híbridas/zonas limites, maio 2015. Disponível em: institutomesa.org/RevistaMesa_4/graciela-carnevale/

[N.E.] Crítico e jornalista prolífico, o estilo fluido de Morais foi moldado pela urgência do momento político e artístico, por um certo humor afetivo e pelas exigências dos prazos dos jornais. Raramente incluem citações e referem-se não apenas a textos críticos e filosóficos brasileiros, mas também internacionais da época – de Marcuse a Fanon–, bem como importantes críticos que refletiram sobre arte e sociedade e movimentos do teatro experimental como Michel Ragon e Living Theatre. Para as notas aqui incluídas, dada a disponibilidade de recursos online, o foco é situar o leitor no que diz respeito aos contextos histórico, político, social, cultural e artístico brasileiro.

Criatividade de maio e os Domingos da Criação do MAM

Criatividade de maio e os Domingos da Criação do MAM. Suplemento Literário. Minais Gerais, 1° de Julho, 1972 (este também foi o texto usado no audiovisual de Frederico Morais com o mesmo título e foi republicado pelo autor com o título “O público: o exercício da liberdade”, no seu livro Artes plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 55-57)

O crítico francês Michel Ragon, escrevendo sobre a posição do artista na sociedade, sobre o impacto dos acontecimentos de 1968, em Paris, perguntava: "como após os happenings gigantes de maio e junho em Paris, após o happening permanente do living theatre, em Avinhão, como após os happenings saídos do laboratório para desembocar sobre a festa, ousarão ainda fazer os happenings de câmara? Como, após os setenta automóveis queimados no Quartier Latin e cujas carcaças permaneceram tanto tempo expostas nas ruas desempedradas, Arman poderia expor pianos queimados em galerias de quadros? Como César, que desgraçadamente não estava em Paris, em maio, para assinar estes carros, poderia fazer Expansões em público após esta expansão de espontaneidade de milhares de estudantes invadindo o Quartier Latin como uma pasta monstruosa saindo de um tubo de dentifrício gigante?"

O tom do ensaio, como todos os demais incluídos no livro Art et Contestation, uma das primeiras reflexões sobre os acontecimentos de maio de 68, em Paris, era evidentemente emotivo. E suas perguntas ficaram sem respostas imediatas. As primeiras respostas, ainda imprecisas, começaram a ser dadas. O sociólogo Alfred Willener analisa os acontecimentos de maio/junho sob um prisma totalmente novo, o da criatividade. A partir dela busca o que seria a imagem-ação de uma nova sociedade ou um novo comportamento para o homem saído daqueles acontecimentos.

Maio de 68 seria, então, segundo esta perspectiva o encontro de si mesmo na coletividade, a liberação de potencialidades individuais sob uma forma coletiva sugerindo, portanto, um comportamento social e político novo, isto é, criativo. A relação entre esta possibilidade crescente de expressão, o reencontro de si e o desenvolvimento das faculdades de imaginação e de invenção, passam, então, por encorajamento recíproco. A situação era totalmente nova e imprevista e não apresentava nenhuma semelhança com situações anteriores seja no campo sociológico, seja no campo cultural.

A insistência no confronto acaba por proporcionar uma revelação, a de que "até aqui, este gênero de experiência parecia reservado aos artistas", e "o fato de que ela tenha sido praticada em maio, em parte por imitação de tentativas artísticas em parte por reinvenção, esboça uma primeira definição desta aproximação do político e do cultural". A conclusão fundamental, portanto, é que havia uma grande proximidade entre a vida e a criação de alguns artistas com o modo descoberto em maio de vida político-criadora. "O parentesco estaria, então, mais no modo de criação dos artistas praticando a improvisação individual e coletiva, o informal mesmo, do que com o conteúdo das obras, que por mais revolucionárias que fossem, são recuperadas pelo sistema mercantil da ‘cultura burguesa’".

A noção de criatividade está ligada à recuperação que o homem faz de si mesmo no sentido de alcançar a plenitude de seu ser. A produção de si mesmo, entretanto é um processo em aberto no qual o homem se manifesta contínua e livremente. A atividade criadora se justifica nela mesma. Viver em estado de criação é reencontrar-se consigo todo o tempo. Só quem está permanentemente aberto à busca do novo e do original, quem cria todo o tempo pode enfrentar a massificação e o caráter repressivo da sociedade atual, a massagem contínua que representa a mensagem publicitária.

A criatividade opõe-se, portanto, à alienação. É a possibilidade de recuperação do homem integral, contra a fragmentação e a dispersão do seu ser, que resulta da excessiva especialização do trabalho e das circunstâncias especiais de vida na sociedade urbana. Como observa Willener "não é somente o objeto terminado que não pertence ao homem que o produz, é também o gesto que fez para produzir quando o instrumento que utiliza não lhe pertence". O espectador comum está alienado não só da arte (produto) mas da criação (processo). Colocá-lo diante da obra acabada é submetê-lo à sua áurea opressiva. "O sagrado, eis o inimigo", diz uma inscrição de 68, em Nanterre. Diante da obra em seu pedestal, o homem comum sente-se como que reprimido no seu instinto criador e o interdito secular "pede-se não tocar" corresponde à sensação que ele experimenta de inacessibilidade: jamais poderei fazer o que estou vendo. O medo e o sentimento de incapacidade levam à submissão e o respeito. Sua capacidade fica bloqueada. O espectador, portanto, sente-se duplamente alienado, em relação à obra e à criação.

Colocar o espectador dentro da obra de arte (como fizemos na série Domingos da Criação) é, polo oposto, desaliená-lo duplamente. Acelerar o processo de compreensão da obra de arte a partir de um relacionamento direto com a criação, dando ênfase à experiência revelando potencialidades e provocando iniciativas. Podendo realizar a obra o espectador rompe o mistério, e o processo de compreensão vem como que por insight, como uma forma de aprofundamento imediato. Uma outra inscrição de maio dizia: "A arte está morta: criemos a nossa vida cotidiana". Quer isto dizer que devemos trazer a arte para o lado de fora, isto é, dissolvê-la no cotidiano, na vida que flui incessante e bela. Se a arte é um produto de substituição em uma vida que carece de beleza, quando esta for alcançada, isto é, quando o trágico for afastado, não haverá necessidade de pinturas, esculturas etc., pois tudo será arte, afirmava premonitoriamente Mondrian. Pois o que importa basicamente é a vida e não a arte. Plutôt la vie, dizia um outro slogan de maio.

Após a negação das velhas estruturas, do caduco sistema das artes após a autodeterminação das individualidades, eis, de início, o exercício da liberdade. "A criação, diz Willener, não é, então, a invenção de uma solução nova, mas de um homem novo". O aspecto revolucionário, na sua especificidade e nos seus limites próprios, dos Domingos da Criação, está justamente em colocar com toda a clareza de propósitos e com a mais ampla liberdade a importância do ato criador. É ele em si mesmo que é revolucionário. Como diz Willener "é mais que permissividade o que conduz à criatividade. Há aí um dos temas muitas vezes desconhecido no domínio social e que os artistas repuseram após longo tempo, a importância do ato criador, fora de qualquer consideração de conteúdo ou de consequência.

Os acontecimentos de maio/junho de 68 na França procuraram alcançar dois tipos de conciliação: "a do homem criador, de novo em relação direta com o objeto que ele produz, e a do homem que torna-se presente a si mesmo, isto é, produzindo não mais para satisfazer seus desejos materiais, mas para criar". Criar é, em última análise, viver livremente, é tomar o parti pris da vida. Outra coisa não diz esta inscrição de maio: "o parti pris da vida é um parti pris político. Nós não desejamos um mundo no qual a garantia de não morrer de fome é permutável com o risco de morrer de tédio". O tédio só transparece onde está ausente a criação. O homem criador vive em estado de excitação permanente, descobrindo a cada instante o novo e o original. No espaço como no tempo, o tédio integra a ordem da repetição, da monotonia cerimonial, do banal. Ordem e tédio rumam juntos.

O objetivo dos manifestantes de maio, portanto, à semelhança dos artistas de vanguarda, não era a tomada do poder aos burocratas, mas o de colocar em primeiro lugar a criação, colocar, isto sim, a imaginação do poder. Para estes artistas e manifestantes "a imagem da sociedade não é mais uma representação que fixa um conteúdo preciso, mas uma espécie de ato de criar uma imagem-ação", diz Willener. Recorde-se, aliás, Tzara, um dos fundadores do dada, que afirmava: "o que interessa a um dadaísta é sua própria maneira de viver". Ou seja, o poeta via o dada como uma forma de "poesia-ação" a arte desfazendo-se na vida: "nós não procuramos nada, nós afirmamos a vitalidade de cada instante".

E se todos fazem sua arte à sua maneira como afirmava Tzara "todo mundo é diretor do movimento dada". Se a criação automática proposta por Breton visava desarrumar o cotidiano lutar contra a "besta louca do consumo" razão tem Pierre Gallissaires para aproximar o dada e o surrealismo dos acontecimentos de maio e junho. "Se há uma similitude geral e surpreendente entre a denúncia e a reivindicação dadaísta e surrealista de um lado, e aquela de maio de 68 de outro, é o caráter geral de revolta para além da esfera material propriamente dita, econômica social"... A única reivindicação dos revolucionários sejam eles manifestantes de maio, dadaístas e surrealistas é a de poder criar livremente, sem peias e amarras, praticar o puro exercício de liberdade.