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O corpo como motor da obra, um comentário

Renata Cervetto

O texto “Contra a arte afluente. O corpo é o motor da obra” foi escrito pelo curador e educador brasileiro Frederico Morais em 1970. Autodidata, Frederico se valia da escrita para refletir sobre o que acontecia em seu contexto mais próximo ao mesmo tempo em que criava vínculos com o cenário internacional. Ler e traduzir coletivamente 1 parte de seus textos do português para o espanhol me permitiu sentir empatia por sua forma de construir o panorama artístico, social e histórico que ele viveu nas agitadas décadas de 1960 e 1970 no Brasil. Sua escrita era coloquial, ele rapidamente conectava ideias e cenários por meio de palavras a partir de uma oralidade performática que se construía ao seu redor todos os dias. Em seus diversos artigos e ensaios, ele contempla a efervescência cultural daqueles anos, colocando a prática artística em diálogo com os movimentos hippie, guerrilheiro, burguês e estudantil, entre outros. A maior parte de sua escrita foi atravessada pela ditadura militar, que começou no Brasil em 1964 e durou até 1985. A partir de 1969, como consequência de novas formas de censura e repressão, Frederico percebe uma mudança na prática artística. Começa a se manifestar uma maior preocupação com o que está acontecendo no nível político e como gerar processos para responder sob a mesma lógica. É aí que o corpo e a linguagem começam a assumir um novo papel.

Esse ensaio dá continuidade e amplia algo que Frederico já vinha desenvolvendo em seus escritos e que continuará a explorar em outros: o corpo como motor. É a partir da noção de corpo que Frederico configura sua forma de conceber e desenvolver sua prática como gestor cultural. O corpo como matéria física (órgãos, vísceras, músculos, inteligência), memória e resistência; em sua capacidade lúdica e criativa. Em 1968, recupera a noção do artista e escritor Vladimir Dias-Pino sobre a importância de gerar uma “arte física”, “respiratória” e “olfativa” 2. Esses fatores viriam a ser fundamentais em "Domingos da Criação", programa que desenvolveu em 1971 como diretor do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nesse ensaio, Frederico já começa a introduzir as ideias que dariam forma ao programa: “E quanto mais a arte confunde-se com a vida e com o quotidiano, mais precários são os materiais e suportes, ruindo toda ideia de obra”. O programa foi realizado no aterro adjacente ao museu e, a cada domingo, se desenvolveu em torno da exploração de um material ou tema: a terra, o papel, o fio, o tecido, o corpo e o som. O museu providenciava esses materiais e convidava as pessoas a trazerem os seus também, a fim de possibilitar experiências coletivas de aprendizagem intergeracional. O corpo e sua ativação fazem com que o espectador passivo ou meramente contemplativo assuma um papel de cocriação ao participar corporalmente de uma proposta artística que não tem outra finalidade senão o “enriquecimento do indivíduo”.

Pensar na arte como plataforma de comunicação, expressão livre e processo leva Frederico a refletir sobre o corpo na cidade, sobre o uso e apropriação da rua e do aterro 3. O novo museu deveria operar a partir de uma arquitetura flexível e aberta às necessidades de uma arte ambiental interdisciplinar, onde o foco não é mais a contemplação dos objetos, mas o processo (artista como proponente). Frederico defende essas ideias contemplando também cenas da contracultura, que reforçam o tato e a audição contra a passividade do olhar 4. É nas cenas dessa contracultura, "a arquitetura das favelas", que os artistas encontram a motivação para criar suas obras.

Em relação a isso, gostaria também de resgatar como Frederico aborda a noção de corpo em resistência. O autor faz aqui um paralelo com o termo “guerrilheiro” para falar de artistas capazes de deslocar os sentidos e provocar ações conjuntas, o corpo contra as máquinas da repressão. A dissolução dos parâmetros estabelecidos para a arte moderna significa que a arte também pode se confundir com “movimentos de contestação, seja uma passeata estudantil ou uma rebelião num gueto negro dos Estados Unidos, seja um assalto a um banco.” Essa "confusão" hoje já é uma metodologia na prática artística. No Rio de Janeiro, esse cotidiano está associado aos carnavais, ao samba e aos desfiles populares, que Frederico traz com a ajuda dos parangolés de Hélio Oiticica e da obra “Caminhando” de Lygia Clark, entre outros. Os parangolés são uma forma de materializar a ideia da “Arte como coisa corporal”. Consistiam em camadas irregulares de cores que podiam ser usadas ao dançar ou sambear. Na mesma linha, Frederico resgata a manifestação do Apocalipopótese 5, realizada no Parque do Flamengo em 1968, em que “o que se procurou foi alcançar um ritmo só, coletivo, um pneuma que a todos integrasse”. Essa integração coletiva por meio da dança, em especial do samba, foi uma forma de resistir à violência e à censura que prevaleciam naqueles anos.

O corpo é a casa

Segundo Frederico, a ideia do “corpo como motor da obra” se refere não só ao aprendizado coletivo desencadeado pela prática artística, mas também à descoberta do próprio corpo. Há aqui uma conexão, talvez implícita, com o autorreconhecimento de nossa própria materialidade, nossas emoções e fragilidade. De onde e de que forma construímos nossa fisicalidade para nos relacionarmos com outras pessoas, e como essa troca nos torna mais conscientes de nossos pontos fortes e fracos. Gostaria de dar aqui um salto para as práticas de mediação para relacionar a forma como Frederico destacou o papel do corpo em processos que hoje chamamos de “desaprendizagem”.

Entendo a mediação como uma prática holística, onde coexistem propostas e metodologias artísticas, ativistas e teóricas. Ao considerá-la como ferramenta de aprendizagem individual e coletiva, ela faz mais do que possibilitar um determinado conteúdo artístico. A mediação como prática promove um pensamento que questiona para a construção de realidades alternativas, uma atitude atenta, um ser-com, como diria Cecilia Vicuña 6. A corpoliteralidade, por sua vez, abre um campo para a leitura dos corpos como plataformas de experiências e saberes situados; o corpo na sua totalidade (vísceras e inteligência, como também sugere Frederico) como materialização de memórias e de cenários futuros.

Entre outros autores e teóricos, Frederico resgata em seus textos as ideias de Herbert Read e John Dewey em relação ao tipo de aprendizagem que a arte possibilita, apostando mais na interdisciplinaridade do que na divisão em categorias do conhecimento. O modo como Frederico concebia a prática artística fez dele um mediador avant-la lettre, uma vez que cada projeto – seja seu modelo da cidade lúdica futura, do museu pós-moderno ou os Domingos da Criação – era desenvolvido considerando seus elementos pedagógicos, políticos e estéticos. Tudo acontecia ao mesmo tempo, e não havia necessidade de tradução porque a arte era para ser experimentada, vivida, não interpretada. Por outro lado, podemos notar certos paralelos entre esse novo posicionamento do artista que propõe situações com a obra do educador ou mediador na atualidade. Há também uma proposta a ser elaborada pelo público que possibilite uma experiência de questionamento ou simples diversão. Por outro lado, um aspecto fundamental que também vemos em ambos os campos é a capacidade de gerar tensão, uma interrupção do curso "normal" das coisas. A prática da mediação artística também deve pensar fora dos parâmetros estabelecidos, de forma a poder propor atividades ou formas de trabalho conjunto que nos tire da nossa zona de conforto mental e/ou corporal.

Para finalizar, gostaria de retomar a ideia de Frederico de voltar aos ritmos vitais do homem, ou "ritmos do corpo no meio natural". Tenho interesse em reforçar a importância dessa ideia e conectá-la com o que Marina Garcés aponta como a “revolução do autocuidado” 7. O ritmo que hoje nos envolve, pelo trabalho ou por obrigações diversas, faz com que permaneçamos num estado de aceleração constante, em que é muito difícil (nos) escutar. Tendemos a esquecer, embora algumas poucas vezes nos ensinem isso, que o corpo é de fato nossa primeira casa. Esse cuidado, respeito e reconhecimento do corpo como um todo é algo que também é contemplado a partir das práticas de mediação artística. O famoso “desaprender” a que apelam as chamadas pedagogias radicais está relacionado também a aprender a (nos) escutar, a habitar o corpo como canal de aprendizagem e de conexão com os outros.


  1. O projeto de tradução dos textos de Frederico Morais é uma iniciativa de Jessica Gogan, a partir de sua pesquisa sobre os “Domingos da Criação”. O grupo começou a trabalhar em setembro de 2020 e é formado por Jessica Gogan, Mônica Hoff, Nicolás Pradilla, Mariela Richmond, Lola Malavasi, Ignacia Biskupovic e Renata Cervetto.osdomingos.org/es/grupo_de_los_domingos/

  2. Ver “Apocalipopótese no Aterro: arte de vanguarda levada ao povo”, Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1968. osdomingos.org/es/texto_critico/apocalipopotese_no_aterro/

  3. O Aterro do Flamengo, ou Parque Brigadeiro Eduardo Gomes, ou ainda Parque do Flamengo, na Baía de Guanabara no Rio de Janeiro, é uma extensão de terreno de 1.200.000 metros quadrados, localizado na área central do Rio de Janeiro, cidade onde fica o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM, Rio).

  4. Ver “O museu e a reeducação do homem”, Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 2 de abril, Artes Plásticas, 1971.

  5. Neologismo criado por Rogério Duarte para designar a ação homônima realizada por Hélio Oiticica, e concebida por ambos, no evento Arte no Aterro: um mês de arte pública, organizado por Frederico Morais entre julho e agosto de 1968. Ver osdomingos.org/es/texto_critico/apocalipopotese_no_aterro/

  6. Vicuña, Cecilia, PALABRARmas, RIL editores, Santiago de Chile, 2005. Acesso em: www.memoriachilena.gob.cl/archivos2/pdfs/MC0035876.pdf

  7. Garcés, Marina, Nueva ilustración radical, Editorial Anagrama, S.A., 2017, p. 25